Ensaio sobre a cegueira (do conhecimento)
- Carolina Nitschke Massena
- 1 de nov. de 2023
- 9 min de leitura
Ensaio sobre a cegueira (do conhecimento)
Introdução:
"Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, cegos que veem, cegos que, vendo, não veem.” (Saramago, 2005). Inicio este ensaio com essa bela provocação extraída da obra de José Saramago, "Ensaio sobre a cegueira". A escrita que segue tem como disparador o tema do conhecimento e como paisagem mais ampla a arte do cuidado. Coloquei-me a fazer o exercício de pensar o conhecimento em contraste com diferentes conceitos tais quais a natureza da realidade, a motivação e a sabedoria. Tentarei, ao aproximar esses conceitos, observar o que contrasta, o que fica visível, quais nuances e diferenças nos é possível perceber nessa aproximação. Enquanto reflito, observo emergir em mim uma certa parcialidade como que uma predileção sobre um conceito em relação ao outro. Acho graça.
Nessa linha de auto observação, vejo também o brotar de uma rebeldia frente a qualquer tarefa que se apresente e que tenha a demanda de ser concluída e entregue. Como este ensaio. Sinto meu coração e mente conectados com o tema e ao mesmo tempo sinto uma recusa em me dedicar à tarefa, tarefa essa que demanda o esforço de sustentar e descrever os fluxos mentais. O corpo responde à exigência, a garganta responde fechando um pouco, um calor sobe até o rosto, os olhos umedecem, uma vontade de chorar brota e logo a vontade já passa. Expiro. A motivação oscila. Resquícios, marcas, possivelmente provenientes dos vários anos de ensino formal, a escola com provas e professores que, eles e elas também marcados por exigências e agendas conteudistas e desconexas de suas aspirações e espíritos curiosos acabam por reproduzir os traumas na relação professor-aluno. A relação entre o conhecer, descobrir, aspirar, questionar soterrada pelo avaliar, comparar, ter que saber e ter que passar (de ano). Passam os anos e as marcas por vezes seguem operando por um tempo mais. Talvez aí já tenhamos uma pista dos efeitos de quando o conhecimento é tomado como algo pronto e absoluto.
O convite a fazer uma escrita em primeira pessoa, ainda que dentro das normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), propicia mais leveza. Um ensaio que permite e convida a compartilhar as reflexões, experimentações e ressonâncias no nível não só do racional, mas também em termos emocionais, corporais e intuitivos ajuda a atenuar as marcas de uma imposição de um tipo de conhecimento e facilita a semear uma nova perspectiva frente ao ato da escrita.
Conhecimento: reflexões, desconstruções e potencialidades
Arrisco-me em fazer uma definição inicial, experimental e temporária de conhecimento. Conhecimento como um conjunto de informações concatenadas e aliadas necessariamente à uma visão de mundo e de si (de sujeito) gerando tecnologias, métodos, coisas, circunstâncias e acontecimentos. Se observo a forma como a noção de conhecimento é usada habitualmente em interações corriqueiras e cotidianas, parece-me que o conceito e concepção de conhecimento não carrega em si mesmo a investigação e questionamento de qual visão de mundo e visão de sujeito servem de base para o que é gerado/encontrado enquanto tal.
Aprofundando essa reflexão em um nível acadêmico, e como base importante para minha reflexão sobre o tema, trago aqui um diálogo entre um físico teórico, Sean Carrol, e um erudito budista, Allan Wallace, onde eles são convidados a debater sobre a natureza da realidade. (“The Nature of Reality”, no Youtube). Em sua fala, Sean fala como o universo, ou, a natureza da realidade, aparece para nós como em camadas. As diferentes formas através das quais podemos observar e interagir com o que há ao nosso redor. Diferentes formas de descrever e pensar o mundo.
Em meio a isso, Carrol diz que podemos cair na tentação de, ou pensarmos que não há nada que conhecemos de fato, ou que há o que conhecemos e aquilo que não conhecemos é apenas uma questão de tempo até que conheçamos. Ele alega que cair em qualquer desses extremos seria desleixo da nossa parte. Que há muito o que não sabemos, mas que há sim o que sabemos. Ele afirma que a camada que tange às partículas e moléculas nós conhecemos, sabemos o que é e como funciona. Fala ainda que é possível que ainda descubramos novas partículas, como a da matéria escura, mas que essas partículas não seriam relevantes para nós, pois não interferem nem interagem com a gente. E todas as partículas que compõem nossos corpos, a física de eu e você, daquilo que vemos e fazemos em nossas vidas diárias, sobre essa camada conhecemos o que há para se conhecer, assim ele afirma. O entendimento de Sean Carrol, me parece, está dentro da nossa visão usual de mundo e de realidade que corresponde à filosofia natural.
Alan Wallace, por sua vez, aponta para os pressupostos inerentes ao pensamento de Sean, axiomas que servem de base para tudo aquilo que ele aponta como conhecimento obtido, mas que não foram comprovados. Esses axiomas são o determinismo, o realismo e o fisicalismo. O que significa dizer que o futuro segue unicamente desde o presente; há um mundo real lá fora independente de qualquer observador e que pode ser conhecido; tudo o que existe é físico, respectivamente.
Alan Wallace inicia sua fala citando William James, para trazer à cena a variável suprimida por Carrol, a do foco da mente do observador. Aquilo no qual direcionamos e sustentamos nossa atenção acabamos por tomar como realidade, aquilo ao que não prestamos atenção tende a desaparecer e ser visto como um epifenômeno, um produto acidental. Allan aponta para o papel fundamental da consciência, nosso ponto de partida como observadores conscientes, do observador como inseparável daquilo que consideramos o fenômeno sobre o qual fazemos premissas e consideramos ser conhecido. Wallace ressalta que no meio acadêmico convencional (“mainstream”) não há ninguém desenvolvendo um treinamento rigoroso e observando a única mente a qual se tem direto acesso. A nossa própria.
Estudamos aspectos relacionados à mente, tal como comportamento, mas não a mente diretamente. Wallace aponta a meditação (capacidade de atenção e metacognição) aliada à ciência como um meio para avançarmos nessa compreensão da natureza do observador, da natureza da mente, e avançarmos na compreensão de coisas que, apesar do avanço da tecnologia, há décadas não avançamos: a questão mente/corpo.
Ao fazer o esforço de acompanhar a lógica desses dois estudiosos me sinto instigada e sinto empatia e um nível de concordância com ambas as reflexões. Essa forma de produzir conhecimento que Sean Carrol traz se mostrou útil em diversos aspectos, mas há algo nesse processo que não enxergamos quando nos movemos com a certeza de que o mundo lá fora está pronto e que ele independe da maneira como a mente é usada. Algo sutil e completamente relevante. Nos movemos desatentos, no modo automático e com uma certa soberba. Uma soberba que acaba nos afetando profundamente, pois nisso perdemos o encanto pela vida ao viver de um lugar interno em que o mundo e o eu estão a priori já demarcado e fixados dentro de um campo de possibilidades. Nos vemos isolados e autocentrados.
Segundo Wallace, (2021) a visão de mundo predominante atualmente na humanidade é o materialismo, como valores predomina o hedonismo, e como modo de vida, temos o consumismo. Essa afirmação nos ajuda localizar por onde anda nossas mente e como o que tomamos por base de referenciais, o que tomamos por verdade ou por conhecido, influencia a forma como nos percebemos, nos sentimos e nos movemos. Nossa visão de mundo influencia em como enxergamos e lidamos com nossos conflitos, internos e externos. Parece-me que nosso modo autocentrado de lidar com a existência ressoa e se intensifica em valores que focam no prazer individual e na forma aparentemente rápida (e ineficaz) de consegui-lo, o consumo. Seja ele do que for.
Acontece que desenvolvemos tecnologias, diminuímos nosso desconforto frente ao ambiente natural e criamos brinquedos mais brilhantes e elaborados, mas não conseguimos, todavia, acolher, atenuar e elaborar nosso sofrimento psíquico. Como diz Wallace, tem algo que não estamos enxergando. Do que se trata nossa cegueira? Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) a depressão tem crescido no mundo. (G1, 2017) Então, será que a geração de conhecimento tal como compreendemos dentro da visão do realismo tem ampliado nosso bem-estar genuíno? Por genuíno tento tocar na dimensão do bem-estar que sentimos e que reflete no nosso modo de vida e nas relações interpessoais, de dentro pra fora, e não a qualidade que é supostamente medida através dos bens materiais e das coisas externas que uma pessoa adquire ou tem acesso, a medida mais usada dentro da lógica do paradigma econômico.
São muitos os caminhos e ramificações possíveis nessa reflexão. O que nos motiva nessa busca por conhecimento? Yuval Noah Harari, em seu livro “Homo Deus” (Harari, 2016), diz que o conhecimento no século XX foi desenvolvido a partir das necessidades associadas à fome, à peste e à guerra. Harari diz ainda que há um paradoxo no conhecimento histórico: "Conhecimento que não muda comportamento é inútil. Mas aquele que muda o comportamento perde rapidamente a relevância" (Harari, 2016, pag.66). Pois torna-se obsoleto. Interessante, não? Traz um quê de areia movediça debaixo de nossos pés que tendem a preferir um chão feito de certezas fixas.
Gostaria de olhar com mais cuidado para o aspecto da motivação em meio a isso. Acho que vejo a motivação como aquilo que nos move, como um aspecto que conecta as dimensões de energia interna, cognição e visão. Algo que depende de nossa visão de mundo, e que influencia como intencionamos e agimos, e que, mudando o que tomamos por base, por real, o mundo que vemos e nossa ação nele muda consequente e instantaneamente. Podemos ver a interdependência operando em diferentes níveis. Nas diferentes "camadas da realidade". No nível social, histórico e psíquico.
Por dentro dessa reflexão anseio e me parece favorável olhar para o contraste entre conhecimento e sabedoria, e nisso, a amplitude do olhar me parece ser um ponto chave. Desconstruindo a possibilidade de haver um conhecimento absoluto e isolado daquela mente que o produz, eu colocaria a sabedoria (aliada à lucidez) aqui como uma compreensão que brota não de fixar as partículas, as forças, as culturas, o eu e o outro em determinado local final, mas como uma visão que viria da não fixação de verdades e a priores. Do espaço aberto. Uma inteligência possível de quando a mente não opera necessariamente desde determinados referenciais, marcas, premissas ou por automatismos, nem se move responsiva seguindo impulso de energia que vê brotar internamente em meio às aparências, mas repousa desde o lugar de abertura.
Lama Elizabeth em seus livros "A lógica da fé" (Mattis-Namgyel, 2019) e "O poder de uma pergunta aberta" (Mattis-Namgyel, 2018) expõe e discorre sobre nossa tendência a nos entrincheirar ou no niilismo, na ausência de sentido nas coisas, ou no eternalismo, ter uma coisa que explique todo o resto. (O que me parece semelhante ao que Sean Carrol traz logo no início em sua fala.) O "duvidismo" ou o "ceguismo", como a Lama coloca humoradamente. Elizabeth nos fala da possibilidade de repousarmos no coração desse paradoxo, o caminho do meio. “Quando nossa tendência habitual de objetificar as coisas relaxa, podemos enxergar a verdade da ausência de fronteiras”. (Mattis-Namgyel, 2018. pág.136) Por ausência de fronteiras, o despir a natureza das coisas de tudo que não lhe pertence, de todo a priori. Assim surge o discernimento que só possível desde um lugar de abertura. Sem verdades a sustentar.
Tenho entendido atualmente que nossa inabilidade de repousar nesse paradoxo é a base que subjaz a nossos conflitos. Fugimos do desconforto do não saber e do não poder controlar e a mente se põe atrapalhadamente a mover em busca da cessação do sofrimento focando em alterar as circunstâncias e eventos externos sem nunca compreender a dinâmica e a dimensão interna desde onde esse sofrimento é sentido nem a interdependência de sua construção e seus significados.
Conclusão
Enquanto agente de paz na vida e no contexto da clínica psicoterapêutica, que me cabe enquanto atuação profissional, vejo que passar por essa desconstrução e compreensão profunda daquilo que chamamos de natureza da realidade ou de conhecimento me ajuda a reconhecer minha própria cegueira e a poder ouvir melhor e cada vez mais as pessoas diminuindo os ruídos de minhas próprias premissas e referenciais. Auxilia-me a me manter sensível e me faz mais humilde. Ajuda-me a poder suportar o não saber e com isso acompanhar melhor sem ser arrastada pela tentação de oferecer um conserto rápido e pronto para o sofrimento dos seres que estão buscando eles mesmo elucidar seus próprios conflitos e visões de "eu" e de mundo. Com o poder de uma mente aberta, posso pensar com eles novas formas de agenciamento e de interdependência.
Referência Bibliográfica:
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã; Tradução de Paulo Geiger. 1 ed. São Paulo: Companhia da letras, 2016.
MATTYS-NAMGYEL, Elisabeth. A lógica da fé: uma abordagem budista para encontrar certeza para além de crença e dúvida. Tradução de Lia Beltrão. 1 ed. Rio de Janeiro: Lúcida Letra, 2019.
MATTYS-NAMGYEL, Elisabeth. O poder de uma pergunta aberta. Tradução de Lia Beltrão. 1 ed. Rio de Janeiro: Lúcida Letra, 2018.
Depressão cresce no mundo, segundo OMS; Brasil tem maior prevalência da América Latina. G1. 2017. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/noticia/depressao-cresce-no-mundo-segundo-oms-brasil-tem-maior-prevalencia-da-america-latina.ghtml
The Nature of Reality: A Dialogue Between a Buddhist Scholar and a Theoretical Physicist. Youtube. ICE at Dartmouth. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pLbSlC0Pucw&t=2680s
WALLACE, ALAN B. Olhando de perto: as quatro aplicações de mindfulness. Editora Paz e Mente; 1ª edição (14 dezembro de 2021).






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